Reflexões sobre Morte em Veneza

resenha

Reflexões sobre Morte em Veneza de Thomas Mann1 a luz do conceito decadência ideológica2 da burguesia.

por Rachel Aguiar

A obra de arte quando adquire a sua matéria de arte se torna indivisível e singular. Essa seria a nossa justificativa para analisarmos a obra Morte em Veneza, pois consideramos as duas obras, a realizada em filme pelo diretor Visconti e a escrita originalmente pelo Thomas Mann como obras indivisíveis e singulares. Por mais que Visconti apreenda toda a narrativa fílmica a partir do livro, sua interpretação transforma o filme em sua obra de arte fílmica. O livro do Mann, muito elogiado pelos frankfurtianos, expressa na obra de arte literária a decadência ideológica da burguesia. Para o filósofo húngaro Georg Lukács o conceito de decadência ideológica coloca em questão a subjetividade do escritor, no qual apela para a necessidade de reafirmar a psique capitalista (o que contribui para inviabilizar a autocrítica), aprofundando, com isso, as escritas voltadas para a superficialidade irreal e decadente da burguesia. Em seu livro A Alma e as Formas3, Lukács considera que a Literatura do século XIX procurava retratar uma burguesia com a placidez de um tempo narrativo do medievo. A literatura ganha força não pela potência de sua época, pois o pensamento em si da burguesia é decadente demais para ser exaltado, mas sim graças às retomadas em períodos históricos anteriores, o que reafirma uma ode à modernidade, momento no qual se legitima o genocídio do povo africano e dos povos originários no continente americano (América do Norte, Central e Sul). 

Thomas Mann retrata exatamente a falência burguesa muito antes do seu período áureo de crescimento produtivo (1945-1970) em que a exploração e genocídio do povo negro e diaspórico ganham proporções assutadoras. A densidade psicológica que se encontra o protagonista Gustav von Aschenbach (e que não foi colocada no filme) retrata o caótico em que a incompletude é vista como um fracasso moral. A infelicidade de si mesmo não acalenta a alma, nem as belas paisagens de sua cidade natal, Munique. Sua infelicidade o tornava “improdutivo”, já que sua análise sobre seu fervor de escrita da juventude arrefeceu com o passar dos anos. Mann descreve essa passagem de tempo como uma morte lenta, a morte do escritor que pulsava em retratar a barbaridade de sua civilização, em que a juventude da época afeiçoava-se com seus escritos. 

Passada a euforia juvenil, encontra-se a morte lenta e em conta-gotas. Veneza, o lugar que se tornou lindo fruto da exploração, invasão, genocídio e escravização feita nos territórios do Oriente e África, parece ser, aparentemente, o lugar de reencontro com a escrita, o que no fundo consistiu no seu leito de morte. Veneza expressa a contradição burguesa – possui beleza, decadência e genocídio. A decadência é vista pela doença (cólera) que coloca a cidade suja e feia, revelando que a doença e o caos designam a própria civilização burguesa. Já a beleza remete às construções milimetricamente levantadas pelos suor e morte dos povos que foram explorados à época das invasões venezianas no século XV. A modernidade edifica o casamento entre belo e genocídio. E neste caso, o comportamento burguês anti-heroicizado analisado por Mann trata o humano como fim, tanto o fim como finalidade da existência da sociedade do consumo, desperdício e genocídio, como o fim de esgotamento da possibilidade da potencialidade criativa. 

Consideramos pertinente trazer algumas reflexões sobre o conceito de decadência ideológica atualizado pelos escritos advindos da Teoria Contemporânea Antirracista à luz da obra Morte em Veneza de Thomas Mann, na qual reforça que tal falência ideológica e civilizatória da burguesia – aparentemente bela, mas doente – é fruto da sua própria edificação. 

1 MANN, T. Morte em Veneza. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.

2 Extraído do livro LUKÁCS, G. Marxismo e Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. 3 LUKÁCS, G. A alma e as formas. Ensaios. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

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