Arte para não sufocar de realidade

entrevista

por Belise Mofeoli

Eu sou escritora. E escrever não é como se fosse algo à parte de mim. Eu sou mulher, sou negra, brasileira, latina, bissexual, caipira, artista… sabe essas coisas que a gente não muda?  Ou são, ou não são. Diferente de cargos, pesos, estilos de roupas, empregos e estado civil, que podem variar. Na mesma proporção que não existe “meio grávida”. E, se amanhã eu acordasse trilhardária, ainda assim, levantaria para escrever. Porque eu escrevo para não enlouquecer,  para mostrar que existem outras formas de pensar o mundo, para causar pontos de discussão e para deixar bem claro que essa preta aqui não só não será apagada como escreveu por aí em memórias dos ancestrais que sobreviveram para que ela existisse. Sinceramente, não acredito que nem eu e nem você, que me lê, sobrevivemos por acaso.

Tentaram roubar nossas almas, nossas descobertas e nossas culturas, nos escravizaram, queimaram nossos documentos, nos abandonaram idosos em beiras de estradas depois de anos de trabalhos forçados, roubaram de nós o protagonismo histórico na nossa luta pela liberdade e ainda indenizaram nossos algozes, destruíram nossos quilombos, mataram nossos líderes, chamaram nossa fé de lenda e pecado, tentaram apagar nossas memórias, contaram com o fato de que, sem recursos, a gente desapareceria… só que não entenderam nada da gente. Nosso povo ressuscita! E somos cada vez mais fortes quando lembramos que temos o direito inalienável de olharmos para nós mesmos, não como estrangeiros, mas como agentes de nossas narrativas.

Tenho trabalhado muito mais como roteirista, contudo, faço diversos outros formatos (você poderá encontrar mais detalhes lá no nosso Editorial). Inclusive, crio formatos originais para audiovisual. E minha escrita parte, muitas vezes, do incômodo. Eu queria que fosse do lugar confortável, mas não há conforto possível de modo perene para a pessoa negra consciente das questões sociais que, para nós, significam vida ou morte. Eu morro um pouco a cada vez que o preconceito vence. Todavia, ando em bando. E “a minha galera” pode contar comigo para não abaixar a cabeça para apagamentos. Tem preta na criação!

Nossa gente não é boa só em arte e esportes (aliás, nem todo mundo é), temos grandes nomes em todas as áreas. Na Academia e na academia. Olhando para as estrelas e para lâminas de laboratório. Encontrando revoluções tecnológicas no quintal de casa e com grandes financiamentos. Pesquisando o que já foi dito ou criando novas formas de dizer. Escrevendo novas leis ou botando em prática receitas de família. Fazendo arte para a vida parecer menos dura ou para se reconectar com os tempos em que arte já era entendida como algo indissociável do alma. Recalculando e reescrevendo realidades o tempo todo! Eu faço arte para não me afogar na tristeza ante o caos, o desamor, as desigualdades. E, como pra mim é bem difícil o ódio, entrego arte como amor. Escrevo e corro atrás de narrativas pretas que não recorram em clichês, para que a Belise menina que fui, possa ficar menos chocada com a diferença do que sempre ouviu dentro e fora de casa a respeito da importância de ser quem se é. E para que outras crianças tenham o caminho menos árduo até que cresçam e seus trabalhos sejam notados. 

É potente rir do opressor, mostrar casais se amando, famílias felizes, imagens de gente nossa em diversas realidades, ainda que encenadas. Ando bem cansada de personagens negros escritos sempre a favor de uma narrativa de terceiros. Não só negros, mas indígenas, orientais diversos, pessoas com deficiência, idosos, natureza e tudo mais que não costuma ser respeitado, sempre terão espaço nas minhas narrativas e na minha vida. Mesmo que não o tema central não gire em torno desta característica. Sem alarde. Porque eu posso escrever sobre dor, mas obrigada, não sou. Era só o que me faltava: nascer livre para agora prender-me a padrões alheios! Está tudo bem negar um trabalho que me adoeceria.

É uma benção ser escritora! Apesar de todas as crises com Síndrome da Impostora cheias de choro e medo, em prol de uma diversidade que é justa ver normalizada, apesar de todos os cachês baixos que já recebi porque era a única alternativa na época, sabendo que não seria mais necessário agir assim um dia, em prol de abrir caminhos para quem virá depois e torcendo por quem chega agora. Por um mundo em que os que já deram certo também abram portas, porque ninguém aguenta mais ser a “negra guerreira”. Não ter rede de apoio cansa! Seja pra criar uma criança, uma arte ou uma vacina é preciso tempo e experiências diversas para ideias surgirem. É preciso descansar para ter  vida própria. Escravizar-se não é uma opção válida.

Aquilombar, hoje, é ter como lugar seguro o pacto social de “Bora juntos e, se eu cair, você me ajuda a levantar?”. Ainda bem que para promover situações assim, existem a APAN, a ABRA, a GEDAR, o Sindcine…, os coletivos, os grupos de estudos, as mostras audiovisuais que primam por trazer alternativas que vão além do que corresponde, exclusivamente, a um perfil eurocentrado, masculino, cis, elitista e heterossexual. A Revista APAN, que começou a germinar em 2019, nasceu no contexto cruel da pandemia. Eu a vejo como o abraço que podemos lhe dar no momento. Torço para que cada linha lhe mostre nossas potências e lhe inspire. Inspirou? Respire! Continue respirando! Continue vivo! Não morra! Lembre-se que há profissionais – contamos com você para ser um deles – que acreditam que o audiovisual pode e deve nos colocar como sujeitos e não objetos.

Existem coisas que jamais surgiriam por quem não está na nossa situação de incômodo. E ainda bem que temos aliados também entre quem não é preto pois, assim, não dependemos só de longas batalhas de pessoas pretas para criarem meios possíveis de atuação para que, daqui a muitos anos, tenhamos uma indústria competitiva. Meritocracia é balela dos cômodos! Não caia nisso. O mínimo que merecemos é que aliados com recursos – e que entendem que não se trata de um favor, sim de legitimidade –  nos deem oportunidades tão boas quanto as de pessoas brancas, com os mesmos cachês, com o mesmo tempo de tela, e que tenham escuta gentil para ouvir o que estamos falando sobre como não aceitaremos mais ser retratados. 

Somos 56,7% da população. Falando em linguagem mercadológica: isso é dinheiro pra caramba circulando nas nossas mãos! Sempre ressalto que “o mercado não ficou bonzinho”, ele acordou! A arte e a educação, como resultados de democratização de direitos (que, espero, voltem a ser regra), são as grandes culpadas. Já entendemos que merecemos oportunidades e sermos representados do jeito certo. Um de nós não é uma coletividade. Não basta um na cena, não basta um no set e, sem dúvidas, não basta um na sala de criação! Ser “token” não me toca! Gosto de produtoras que me contratam sabendo que comigo virão opiniões, vivências, criatividade e essa paixão pelo que não se mostra. Amo, sobretudo, a delicadeza daquilo que é ordinário! Quero cercar-me de pessoas que me deem oportunidade para escrever para perfis, formatos e gêneros diversos, que não achem que minha negritude é um tema. 

Não queremos ser seguidos na rua como suspeitos. Queremos ter nossos trabalhos seguidos com respeito. Sigo cientistas, educadores, esportistas, filósofos e artistas que admiro para que, nos momentos em que penso em desistir (são tantos!) eu não me permita. Se meus antepassados sobreviveram para que eu fosse possível, não posso ser o pesadelo ou a vergonha deles. Torcendo para que seja o sonho! Se eu for desistir de algo, que seja daquilo que não faz mais sentido para mim. Mas a arte faz e sempre fará. Como disse desde o começo, não dá para eu não ser escritora. Teatro, literatura, cinema, televisão, música, podcast… minha mente está sempre criando, contudo, sempre ressaltarei: escolhi minha profissão por amor, porém, trabalho por dinheiro. Uma sala de criação diversa e decolonial é uma oportunidade de todo mundo crescer junto, não um favor. É um direito e um trunfo mercadológico. É revolucionário e proporciona felicidade.

Eu torço por você que me lê. Tanto faz a sua cor. Se for branco e chegou até esse estágio do meu texto sem sentir-se aviltado: podemos formar uma aliança? Se pessoa não-branca: sobrevivemos! Sobrevivamos! Vivamos e criemos. A gente chegou até aqui para marcar que é só o começo. O Brasil nunca foi uma democracia racial, todavia, isso nunca esteve tão escancarado. Estamos longe de ser o país dos sonhos. A boa notícia é que nós, do audiovisual, trabalhamos na indústria de criar sonhos. Sejamos os arautos uns dos outros quando a realidade se interpuser soberana. E boa Jornada!

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