AFROFUTURISMO: PARTE I

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foto de eric paiva -  modelo Priscila Nascimento

foto de eric paiva – modelo Priscila Nascimento

por eric paiva

VISITANDO OS GRIÔS DO AMANHÃ

O termo afrofuturismo foi concebido pelo americano Mark Dery, no ensaio acadêmico ‘‘Black to the Future’’, presente na antologia Flame Wars: The Discourse of Cyberculture, de 1994, onde o autor, branco, entrevista personalidades afro-americanas como Samuel Ray Delany, um intelectual, crítico literário e autor de ficção científica e de literatura gay; Greg Tate, um escritor, músico e produtor cujo foco de sua escrita é a música e a cultura afro nos EUA; e Tricia Rose, uma socióloga e autora que foi pioneira em bolsas de estudos sobre hip hop. É importante deixarmos claro que Dery não criou o afrofuturismo, apenas denominou a partir de um questionamento que surge ao, na época, haver poucos autores negros de ficção especulativa. Dery coloca:

Pode uma comunidade cujo passado foi deliberadamente apagado, e cujas energias foram subsequentemente consumidas pela busca de traços legíveis de sua história, imaginar futuros possíveis?“.

Mark Dery (Flame Wars: The Discourse of Cyberculture, pág. 180)

Dery, além de acadêmico é um crítico cultural, e a denominação de um termo para a percepção e entendimento da existência de um movimento é algo extremamente comum.  O termo film noir, que remete a obras policiais americanas com uma fotografia e clima bem característicos ganhou, na década de 1940, sua nomenclatura pelo crítico francês Nino Frank. Já o termo Nouvelle Vague, que retrata um movimento cinematográfico que começou na década de 1950, foi criado por um grupo de críticos cinematográficos da revista Cahiers du Cinéma. Em suma, é comum alguém que não faça diretamente parte de uma expressão cultural cunhar um nome para ela, já que é parte do seu trabalho acadêmico ou jornalístico. Se perguntarmos quem é Mark Dery na fila do pão do afrofuturismo, entendemos que ele é o marketer que colocou o nome na “embalagem”, mas para além da nomenclatura é o conteúdo que nos importa. A percepção de Dery e seus entrevistados sobre esse movimento sociocultural, artístico e filosófico trouxe importantes caminhos para a construção de uma via identitária na ficção especulativa.

O afrofuturismo ganhou notoriedade nos últimos anos e, apesar de não ser algo novo, o entendimento do conceito gera bastante discordância e até conflitos conceituais entre entusiastas, estudiosos e artistas que empregam o afrofuturismo em suas obras. Nada está gravado no cerne de uma verdade imutável, pois o conceito é fruto de uma transformação cíclica. Há algum relativismo na construção do afrofuturismo? Sim. O caminho percorrido até chegarmos em algo cuja estrutura ainda está em construção precisa de constante visitação. E é importante estarmos atentos aos recortes históricos que estabelecem avanços significativos desse princípio. Uma boa estrutura necessita de uma base sólida.

Neste texto pensaremos esse movimento focando mais em sua vertente audiovisual, já que como uma expressão cultural e filosófica o afrofuturismo está em diversos campos da arte, como um grande guarda-chuva cultural. Creio que podemos separar esse conceito amplo em quatro aspectos importantes: autoria representativa, temporalidade, afrocentrismo e estética. Onde cada tópico gera uma gama de outros desdobramentos.

“SE QUER SABER O FINAL, PRESTE ATENÇÃO NO COMEÇO.”

– PROVÉRBIO AFRICANO –

Em 1993, um ano antes da publicação de Flame Wars, de Dery, morria o homem que um dia foi Herman Poole Blount, uma das figuras mais importantes do afrofuturismo. Blount era mais conhecido pelo nome que adotou um dia: Le Sony’r Ra ou, apenas, Sun Ra. Um dos artistas que melhor incorporou o afrofuturismo como uma corrente filosófica vivendo-o em sua encarnação terrena e na sua espiritualidade. Sun Ra foi músico performático, compositor, poeta, um equacionador cósmico e um vanguardista que tocava uma espécie de jazz modal cheio de improvisação. Ra se apresentava junto de sua banda The Arkestra, uma orquestra de até trinta músicos onde o “A” da ancestralidade guiava as evocações artísticas do grupo.Sun Ra é tido como um dos pioneiros do movimento afrofuturista, uma confluência de conceitos que ele autodenominava: “equação”. Conseguiu ser emblemático mesmo numa época em que não havia muita abertura no audiovisual para a representatividade negra, ao menos, não como hoje. Porém, é importante falarmos do contexto da época dentro do nosso tópico de autoria representativa, Space is the Place, de 1974, surge num momento onde os primeiros autores, roteiristas, produtores e diretores negros começam a ganhar espaço relevante em Hollywood. Claro que havia profissionais na Indústria cinematográfica e fora dela, muito mais fora, é importante frisar isso. Existia alguma visibilidade representativa com alguns atores de peso, mas só no início da década de 1970, que os profissionais e artistas autorais conseguiram algum espaço significativo com o blaxploitation. Há diversas questões relacionadas ao gênero, como seu propósito para os estúdios americanos controlados por brancos, o reforço de estereótipos e até a guetificação das obras produzidas. Blaxploitation cujo nome é um amálgama de black (negro) + exploitation (exploração) = exploração negre, e foi sarcasticamente cunhado por Junius Griffin, um integrante da NAACP (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor), foi alvo da própria entidade, entre outros grupos militantes, até seu fim. É uma questão polêmica. Entretanto, esse foi um gênero que colocou uma série de talentos nos holofotes, como Pam Grier e Tamara Dobson, e também por trás das câmeras, como Melvin Van Peebles, Gordon Parks e Rudy Ray Moore, além de salvar Hollywood de um grande declínio e, posteriormente abrir caminho para talentos como Spike Lee. O blaxploitation nos presenteou com obras bem distintas como as sátiras de ficção especulativa como Blacula (1972), uma paródia de terror sobre o conde Drácula, e Blackenstein (1973), uma paródia científica da criatura Frankenstein. Porém, o contexto dessa época traz um retrato da falta de representatividade no audiovisual americano, Space is the Place, uma obra ícone do afrofuturismo, figura em algumas listas como um filme blaxploitation, e foi dirigido e co-roteirizado por profissionais brancos. O que em suma é parte da crítica presente no filme e que aborda, justamente o subaproveitamento de talentos negros. Esse retrato da representatividade não desmerece ou diminui o legado de Sun Ra, mas é importante termos uma visão ampla da luta que permeia o discurso da obra e seu contexto histórico.

“Vocês não existem nesta sociedade. Se existissem, seu povo não estaria buscando por direitos iguais. Vocês não são reais. Se fossem, vocês teriam status entre as nações do mundo. (…) Eu não venho a vocês como uma realidade. Eu venho a vocês como um mito, porque é isso que os negros são: mitos.”

Sun Ra, em Space is the Place

A autoria representativa, que é a essência do afrofuturismo e uma luta constante do negro no audiovisual mundial, é uma demanda que vem desde os primórdios do cinema. Já a visibilidade representativa que traz os negres sendo personalizados nas telas, ainda é algo muito aquém, apesar das conquistas no meio. Essa demanda de duas vias de representatividade vem de antes do blaxploitation ou de Sun Ra. Nos primórdios do cinema, mais especificamente em 1912, no apartheid americano, emergia com The Railroad Porter, uma resposta aos filmes que estereotipavam negros ou simplesmente os ignoravam. Um filme feito por um autor negro, William D. Foster, e com atores negros. Esse marco do cinema nasce junto com uma empreitada de resistência e estabelecimento de uma memória negra no audiovisual, pois diversos estúdios geridos por empreendedores e produtores negros surgem, a margem, de uma Hollywood(land) branca que se consolidava. Com o lançamento do filme O Nascimento de uma Nação em 1915, de D. W. Griffith, resistir, ter representatividade e contar nossas próprias histórias era uma questão de sobrevivência. E não somente num sentido imagético, já que a representatividade nos resgata da possibilidade de sermos simples fantasias narrativas, ou mitos (como diria Sun Ra), para sermos um reflexo de nossa existência. Oscar Micheaux, um autor ícone desse período turbulento, entendia bem esse conceito, seu nome é um dos que mais se destaca numa trajetória de perseverança e uma filosofia de estabelecimento do negro na Indústria cinematográfica. Micheaux conseguiu que o cinema negro, os race films, perdurassem, mesmo à margem dessa indústria, por décadas. E nos presenteou com o que é considerado a primeira ficção científica negre: Son of Ingagi de 1940, dirigido por Richard C. Kahn. A era dos race films acabou por volta de 1950, tendo dezenas de obras, sendo esse o mesmo período em que os primeiros filmes africanos surgem.

Já no Brasil, a visibilidade representativa sempre foi uma questão, também, de muita luta. Não haver, por exemplo, tantas obras dignas do talento de Ruth de Souza ou Grande Otelo é algo quase criminoso. Além das inúmeras representações estereotipadas de negres no período escravocrata, nas mansões e lares da classe média ou nas favelas. Já a autoria representativa surge no mesmo momento em que, na gringa, o blaxploitation despontava. Em 1970, o primeiro longa-metragem dirigido por um autor negro, o Um é Pouco, Dois é Bom, de Odilon Lopez, ganhava o mundo. Quatro anos depois surge Alma no Olho, de Zózimo Bulbul, evocando, no mesmo ano em que surge Space is the Place, os anseios de figuras como Ra e Micheaux. Alma no Olho é praticamente um filme proto-afrofuturista representando de forma minimalista a história de um passado feliz para os negros que foram usurpados pela escravidão e pavimentando um aviso crítico para as gerações futuras sobre nossa identidade. A estética do filme é a mais afrofuturista que há: a melanina da nossa pele.

Na década de 1960, entre o fim dos race films e o surgimento do blaxploitation, exatamente em 1966 nascia o super-herói Pantera Negra, criado por Stan Lee e Jack Kirby, dois autores brancos. Entretanto, o lançamento do filme do personagem em 2018, estrelado pelo ator Chadwick Boseman, o T’Challa ou o Pantera Negra estabeleceu um marco importante na história do cinema mundial. É um filme com visibilidade representativa? Sim, já que mais de 90% do filme é composto por atores negres. É um filme com autoria representativa? Sim. Foi dirigido por Ryan Coogler que co-roteirizou junto de Joe Robert Cole. Vale lembrar que em 2010 foi lançado o desenho Marvel Knights Animation: Black Panther com um grande elenco negre, trazendo nomes de peso como Djimon Hounsou e Jill Scott, mas com pouca representatividade autoral. Uma olhada rápida no IMDb achamos poucos nomes negres na produção da animação, destacando Reginald Hudlin no roteiro e Sidney Clifton na produção executiva. Mas esses dois elos da representatividade estão em outras obras que antecedem em muito o Pantera Negra, então, qual é o marco que o filme estabeleceu? Bom, Pantera Negra é o primeiro super-herói de ascendência africana criado por uma editora mainstream de quadrinhos, a Marvel. Ele traz diversos elementos do afrofuturismo e se tornou um grande representante desse movimento. Ele serviu e serve de modelo para diversos jovens negres pelo mundo e é uma obra muito elucidativa quando precisamos mostrar o que é o afrofuturismo para alguém. Está longe de ser uma obra perfeita, como raramente uma obra audiovisual o é, mas o filme institui uma espécie de símbolo da autoria representativa SEM RETORNO. Ou seja, antes de 2018 há vários filmes afrofuturistas feitos por autores brancos que pensavam u negre ou representava sua visão embranquecida do universo negre, mas Pantera Negra estabelece um marco do nosso tempo: não há mais espaço para isso. Tentar contar nossa história, usando nossa filosofia é usurpar de nós o protagonismo negre. Não que antes não fosse, mas o contexto histórico atual de luta e conquistas por representatividade não permite mais esse tipo de postura. E Pantera Negra é o agente simbólico desse recado. Tudo fruto de trajetórias históricas da luta de notórios como Oscar Micheaux, Sun Ra, Zózimo Bulbul, Ruth de Souza, Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez e muitos outros, que lutaram para além do recorte audiovisual.

A visibilidade e autoria representativa são aspectos ligados ao agente de produção de narrativas próprias, mas o afrofuturismo também precisa de seu viés filosófico e conceitual… precisa da complexidade do temporal ligada a nossa própria história, da identidade visual que nos represente e de uma voz afrocêntrica que reverbere nossas narrativas. Todos esses temas discutiremos nas demais partes desse recorte conceitual sobre nosso afrofuturo.

Nos vemos ontem, até lá!

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