ENTREVISTA COM JOYCE PRADO

Por Belise Mofeoli

Joyce, se você estivesse fazendo um pitching de elevador, como você definiria “Chico Rei Entre Nós”?

Um filme que deseja conseguir revelar ou desvelar para a população negra os nossos conhecimentos mais preciosos e que, através do Chico Rei, esses conhecimentos fundamentes para a construção de Brasil que temos hoje, seguem negligenciados como promoção de saberes de uma comunidade negra de agora. Chico Rei tem o desejo de promover a emancipação, que vem a partir do autoconhecimento que, das pessoas negras traz do conhecimento de sua origem negada.

E por que, dentre tantos nomes, escolher narrar a história de Chico Rei?

Em 2018, quando chegou o convite de Abrolhos, já havia a proposta de Chico Rei, mas sem essa abordagem. Eles pensavam numa odisseia clássica de figuras heroicas. Eles queriam afastar essa perspectiva e começar a nascer mais humanidade para essa figura. Quando vi que a produtora tinha essa abertura, na busca da compreensão daquilo que desejavam, vi que dava para começar a moldar o projeto. Foi um projeto a jato. Mas eu gosto de construir no processo de set. Achei que era bom. Era o primeiro momento de conhecer o projeto, de descobrir quem era Chico Rei e encontrar pessoas e inciativas do presente.

O Dalton Paula fez um projeto de resgate de personali­dades negras – que a gente não tinha referência de imagem – e, dentre essas personalidades, foi Chico Rei. Ele tem um quadro do Chico Rei que ali eu conheci Chico Rei. E emocionou bastante por­que é a representação de uma pessoa negra dentro de um contex­to colonial, de uma maneira digna.

Como se deu o convite da Abrolhos?

A Laura (produtora executiva) conhecia o trabalho da Nuna. Ela é uma jovem mulher branca muito capacitada e começou a pesquisar o trabalho de várias pessoas negras. Partiu dela essa iniciativa de ter uma equipe totalmente negra, mas a montagem da equipe, foi junto comigo.

Havia um primeiro registro de 2015, com imagens que não foram usadas no filme. Abriram câmera pra filmar reinado e entre­vistar algumas personagens. Era material feito por um grupo de homens brancos… e ela falava que não era aquilo. Aí começa falar com várias diretoras e entra em contato com meu projeto “Cartas de Maio”, lançado em 2018 – onde convido algumas pessoas ne­gras contemporâneas a enviarem cartas pros seus antepassados de 1888. Conversamos, e rolou o convite oficial. Comecei a trazer as pessoas que faziam sentido estar comigo nessa “peripécia”.

Como assim “Chico Rei Entre Nós” foi feito sem financiamento de leis de incentivo? De onde tiraram recursos? Porque tudo nele é lindo: luz, foto, arte, roteiro, montagem, e, obviamente, a direção.

O financiamento saiu direto da Abrolhos, do André. Eles es­tavam procurando aumentar o portifólio da produtora. A equipe era reduzida: som direto, AD, fotografia, eu, assistência de foto e pro­dução. Mas como você olha para as características múltiplas de cada pessoa da equipe? A expansão de saberes faz com que uma pessoa possa fazer mais de uma função.

Aquilo foi o início de gente que cresceu, mas talento de cada uma já estava ali. O set foi o mais tranquilo. A finalização foi uma guerra! Não renegociei meu cachê, mas disse que não estava pron­to e que não ficaria pronto em seis meses. Não tem como.

A proposta da “cartografia visual” partiu de uma necessidade de roteiro – que você divide com Natália Vestri – ou da direção? E por quê?

Conforme foi imergindo na história do Chico Rei, o convite casa com a minha primeira viagem para a Europa, na época, indo participar do TFL (Torino Filme Festival) e, aproveitando que a pas­sagem estava paga, aproveitei para fazer um rolezinho pela Europa com os recursos possíveis. Peguei o trem, visitei minha madrinha e minha amiga e, em Genebra, conheci pessoas negras do mundo todo, em vários perfis de diáspora, uma região super cara, onde a gente foi em vários restaurantes africanos. Fizemos um bate e volta, de ônibus, para Paris. No Louvre, vimos uma parte minús­cula sobre arte africana e fomos seguidos por seguranças. Voltei a tempo do ônibus para Torino, porque meu voo sairia de lá. Foi no meio disso tudo que eu li a primeira versão do roteiro do Chico Rei e conhecendo quem ele era, então, já foi sobre deslocamentos desde o princípio.

Fiquei pensando na narrativa dele em três atos: o sequestro dele (todo o período do cárcere), o momento em que ele consegue comprar sua alforria (consciência subjetiva) e quando ele conse­gue alforriar mais pessoas da sua comuni­dade (emancipação coletiva). Aí a gente começa a falar de emancipação. Porque eu só acredito em emancipação assim, no coletivo. O jeito de trazer isso para o roteiro era procurar pessoas que ha­bitavam espaços que Chico Rei habitou – as irmandades, as minas, a cidade de Outro Preto, o Congado – e olhar o que cada um deles poderia nos ajudar a trazer de maneira imagética mais intensa, os lugares onde Chico Rei viveu. E depois olhamos para essa São Paulo, que foi totalmente embranquecida, e as coisas se construí­ram sobre a memória de pessoas negras. Essa local da cartografia visual já era uma energia desde a experiência de contato com o projeto. Ana Maria Gonçalves diz que uma coisa que conecta a co­munidade negra é o trauma geracional e a busca pela cura desse trauma, muito profundo, que a gente só vai conseguir curar coleti­vamente. Esse trauma começa nos porões dos navios negreiros, uma coisa que não dá para ser esquecida ou superada.

Estamos falando de um filme documental. Até que ponto a pesquisa – feita pela Luana Rocha – foi feita de modo responsivo às necessidades que roteiro e direção sentiam ou o que foi descoberto no meio do caminho que ocasionou uma mudança de rota?

A Lu teve um papel muito importante. A gente tinha uma pes­quisa histórica prévia, baseada nos princípios da colonialidade. Quando eu encontro a Luana e falo que preciso de pessoas que tenham similaridades de momentos de vida com o Chico Rei, a gente parte para uma pesquisa de personagens que vão conseguir compartilhar com a gente vivências tão potentes e transformadoras como Chico Rei foi para a comunidade deles. A gente tinha a refe­rência já de pegar pessoas do Congado, pessoas que trabalhas­sem nas minas. Luana é jornalista. Ela foi escutando as pessoas, e elas indicavam outras pessoas. Ela foi na mina do Chico Rei. E a gente foi tecendo as histórias das pessoas.

Eu sou muito apaixonada pelo núcleo de personagens da Mina Jeje (David, Anderson, Pedro), que estão vivenciando essas histórias que a Luana foi encontrando. Pessoas que não só co­nheciam a História, como falavam da história à sua frente. Haviam similaridades de curvas narrativas. Porque quando você vai para o cárcere, na estrutura de roteiro e de ato, o cárcere é onde a gente nasce para a sociedade racista, que não faz a menor questão de trazer uma conscientização às pessoas negras sobre quem elas são de fato.

Corrija-me se eu estiver enganada: Depois desse perrengue todo de mostrar um filme, de fato, independente, ele estreia online, no meio da pandemia e só em 2023, em sala de cinema, e isto devido ao bom desempenho nos festivais. Essa informação está correta?

Ele nem chegou a ir para sala comercial de cinema. A gen­te teve algumas exibições presenciais – isso foi em 2021 – no Rio, em agosto; também uma no Centro Cultural São Paulo, mas ele estreou direto nas plataformas VoD: GloboPlay, Itaú Cultural Play, Claro on demand. Teve, acho, duas exibições no Canal Brasil.

Como foi ver seu “Chico Rei Ente nós, enfim, em tela grande?

Foi muito emocionante e foi muito sofrido de alguma maneira, né? Acho que foi um processo de administrar aquela ansiedade do primeiro longa que é encontrar as pessoas, comentar sobre um processo que é muito subjetivo e isolado. Eu tinha muito desejo de ver as pessoas negras assistindo ao filme para poder conversar com elas e não foi o que aconteceu. Não aconteceu nem essa troca com o público, nem a finalização do jeito que a gente queria. Foi cada um num monitor, para ter uma referência de imagem e som, mas sem saber como ficaria numa sala padrão. A primeira exibição é uma tentativa de suprir essas necessidades. Se eu tivesse assistido numa tela grande antes, já teria mudado e feito diferente. A primeira vez que consegui sentar numa mesa de bar e falar sobre ele, foi no Rio de Janeiro.

(Joyce começa a se emocionar muito aqui.)

Inclusive foi com o Algrin David.

(Algrin David faleceu em 2023; seu desaparecimento foi divulgado na rede da APAN. Joyce se concentra e segue com sua resposta.)

Algrin David – em memória

Falei dele com o Algrin David – que conheci no Encontro de Cinema Negro (Zózimo Bulbul) – , Thaís Espírito Santo, Bruno Ri­beiro, o Arthur, da Oxalá. (…) Essa mesa de bar foi a primeira opor­tunidade de trocar sobre o filme. (…) A gente teve uma exibição em 2020 dentro do Encontro de Cinema Negro (Zózimo Bulbul), inclu­sive, numa conversa com a Ana Paula…

Ana Paula Alves Ribeiro. Maravilhosa! Adoro! Participou da edição anterior.

Quando eu te encontrei e convidei para participar do volume 2 da Revista APAN, disse que havia assistido seu filme, online, em festivais de cinema negro durante a pandemia. E foi mais de uma vez, porque ele me emociona. Você me fez uma pergunta que costuma fazer a quem elogia seu trabalho: “O que mais te chamou atenção nele?” Repito agora o que te falei antes: a imagem que criei na minha cabeça de negros idosos, que não faziam parte de irmandades, abandonados na estrada quando não “serviam mais” para serem explorados.

Aquela figura foi consolidando na minha cabeça como um preto-velho e não saiu. Seu filme é lindo, mas dá angústia, raiva, sensação de impotência e por fim, necessidade de resistência. Essa foi a minha experiência com seu filme. Para você: o que mais te chamou atenção, e nunca vai sair da sua memória sobre Chico Rei Entre Nós? Um momento. Pode ser da produção, do impacto nas pessoas, de surpresas no meio do caminho… tudo.

Nossa, que pergunta difícil! (Longa pausa) O que definiu o filme, para mim – e isso foi muito louco – foi a nossa primeira diá­ria. Foi A Ocupação Chico Rei. As pessoas pensam em Ouro Preto muito se remetendo à imagem do que é antigo, né? E a gente vai para um lugar que está em construção e que tem força para isso, graças a tudo o que Chico Rei deixa de legado, e vê as pessoas, as crianças, num contexto mesmo de comunidade com formação e base política. Essa diária dá a base política do filme. Dizendo, no contemporâneo, “Olha, isso aqui é o início”.

No filme, é apontado que Chico Rei pode não ter existido. Dizem isso também de Luísa Mahim. E o trunfo utilizado como argumento, é sempre a falta de registro. Mas se formos focar nisso, então, nem nossos antepassados existiram e, portanto, nós, tampouco, somos reais. Você considera que a tradição oral seria capaz de ter criado Chico Rei, ou tudo o que você encontrou sobre ele com seu filme serve de resgate e provas de sua existência?

(Joyce ri)

Eu acho que tudo que o filme traz é um resgate e prova da existência dele e de outras pessoas relevantes. É muita canalhice dizer que não existiu porque não tem registro, né? Gostei muito desse gancho que você faz para a pergunta, porque é isso, nós não temos registros dos nossos antepassados, então, não somos reais?

Estamos aqui para provar isso!

Exatamente. Uma coisa que não está no filme: di­zem que Chico Rei, antes de morrer, enlouqueceu. E o filho dele fala que parte do processo de enlou­quecimento tem a ver com o lugar onde eles estavam, de intensa perseguição política, imagino. Pensa: uma liderança negra na cidade mais rica. Era a cidade com mais dinheiro no mundo! Era chamado de Vila Rica! Bater de frente nesse momento polí­tico, tendo uma mina de ouro… só Chico Rei para sa­ber o que estava sentindo, quanto ataque, quanta violência e o que sua família sofreu. Depois da sua morte, a família se muda para esse local chamado Pontinhas, uma cidade bem afastada de Ouro Preto, o Quilombo de Pontinhas, onde ainda estão os descen­dentes do Chico Rei. O filho dele aponta que, quando o pai muda de Ouro Preto, é pra recomeçar uma comunidade de outro jeito. É ele olhando para algo que já estava adoecido em 1700 e que con­tinua adoecido até hoje. Se a gente não quer adoecer, tem que ver o que é fundante. Já naquela época, o filho do Chico Rei entendeu que o fundamento, mesmo na diáspora, deveria partir deles, para que a comunidade se reconstituísse.

O que você considera o mais importante do seu filme: o jeito como ele foi feito e a equipe escolhida, o registro histórico ou alguma mensagem que fica?

Ah, com certeza, a equipe. Uma experiência de projetos que são assinados 99% por pessoas negras na equipe. A relação de in­timidade, identificação, fortalecimento que isso traz no set, na vida… nem pre­cisa falar, você sente. A Nuna é, realmente, uma das minhas amigas mais próximas e foi muito impor­tante passar por isso com ela. Mesmo em momentos re­creativos, foi com estar com ela.

Você considera “Chico Rei Entre Nós” um marco da sua carreira? Pergunto porque sabemos que sucesso de pessoa negra no audiovisual, muitas vezes, não tem a ver com competência – o seu talento está mais do que comprovado – e sim com oportunidades. Resumindo: no fim das contas, mais portas se abriram para você?

Nossa! Sim, acho que sim. Há duas maneiras de olhar para essa relação: Chico Rei é um marco para a minha carreira quan­to escritora de imagens, roteiro e direção têm esse desafio, e não é uma escrita simples, precisa despertar emoções e sen­sações. E é um marco por me trazer muitas respostas sobre a responsabilidade que é retratar nossa História com respon­sabilidade, permitindo a nós, pessoas negras, pensar de modo distinto do “fabular” que nos foi apresentado.

Por isso da minha pergunta. Joyce, para além da catarse e dos tapinhas nas costas, eu quero saber, objetivamente, se melhorou seu cachê no mercado, porque mulheres negras, não costumam ser muito valorizadas.

Bem objetivamente: não sinto isso. Isso não é concreto, não é real. Até porque – e é aí que eu acho que é um lugar de muita li­bertação para mim, e dentro das possibilidades que eu tenho , e eu vim de uma família classe-média, que não é o recorrente na maior parte das família retintas, a minha libertação hoje é conseguir forta­lecer, cada vez mais, a produtora. Então, Chico Rei me fortaleceu a ponto de eu entender que a Oxalá é possível sem eu precisar estar o tempo todo sendo contratada por outras pessoas.

E tem alguma pergunta que eu não fiz que não costumam te fazer, e que você queira ter a oportunidade de responder?

Acho que quero falar sobre futuro. Sobre o que eu aprendi sobre Chico Rei: que tenho que aprender a ver além do que meus olhos estão vendo. E o filme me ensinou a como traduzir esse aprendizado. As irmandades me ensinaram que, como coletividade, a gente nunca se de­samparou. A gente olha para os quilombos, mas esquece que nos centros urbanos, as irmandades mantiveram a gente pulsando. As pessoas negras precisam aprender o quanto as irmandades foram importantes para manterem a gente em pé, assim como os terreiros e os quilombos. Quanto uma pes­soa de direção e roteiro, o filme me ensinou a fi­car mais tranquila quanto a não saber o final e acreditar no processo. As cenas vão se revelando e, se a gente não estiver aberto praquelas mudanças, não vai ver o que já está revelado na­quelas imagens. Os projetos que fazemos, já são cura. Temos mui­to privilégio de ter uma profissão de estar mudando quem a gente é. Criando registros.

Obrigada, Joyce, pela entrevista. Fiquei muito feliz quando você topou participar.

Obrigada pelo convite, Belise. Parabéns pela articulação de todos vocês. Eu vi a Revista número um e está linda!

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